Nos últimos meses houve três dias de chuvas dignas, dessas intensas e que enchem barragens e elevam os caudais, dão à boca da terra alguns refrescos urgentes, sabendo todavia que, quando excessivas, provocam o vómito dos terrenos, sufocam-nos, alagam-nos e afogam-nos – a água é sempre a água, seja a do céu obscuro ou do mar inquietado.
Só quando a chuva causa torrente, caudal engrossado e rápido, provoca cheias, inundações, catástrofes, somos levados a meditar na nossa pequenez – e mesmo assim não nos convencemos. É sempre culpa de alguém quando o esgoto transborda, quando a casa construída erradamente na falésia vai abaixo, quando as construções na paisagem protegida são engolidas pela tempestade. Procuramos sempre o bode expiatório – governo, estado, edilidade, construtor civil – e atribuímos-lhe as nossas culpas. É como no incêndio que queimou o nosso terreno que estava imundo, com restos de vida podre nas traseiras e muita inconsciência mesmo à porta.
Não somos filhos da natureza, mas seus parentes afastados, aqueles parentes que têm a pretensiosa ilusão de ser acima dos elementos naturais.
No passado, Ar, Fogo, Terra e Água mereciam a mais profunda reflexão. Hoje são o que resta da nossa incúria, o ar poluído, a Terra espezinhada, a água escassa, o fogo descontrolado.
Não defendo o regresso ao animismo, à pré-história, ao temor aos deuses. Nunca fui educado nessa direção, pelo menos por mim. Mas gostava de elevar-me até aos padrões do bom senso.
Sou pela cultura, sabendo que a cultura nem sempre é boa, nem sempre é apreciável, nem sempre se deve usar como referência. Sabendo que a mesma cultura é o que resulta da nossa ação transformadora sobre a natureza. Temos, portanto, uma cultura da falta de respeito nestes dias que vão passando.
Eupória, na mitologia grega, era uma das horas, filhas de Zeus e de Témis, deusas guardiãs da ordem natural, do ciclo anual de crescimento da vegetação e das estações climáticas anuais. Eupória é a personificação da abundância. Não a temos junto de nós, nos dias de hoje. Por isso a ordem natural não é a mesma.
O ciclo anual de crescimento sofreu rudes golpes. A abundância é uma ilusão.
Há na cultura elementos muito interessantes, é verdade. O meu muito estimado Filipe Duarte Santos, professor investigador considerado o maior especialista no estudo das alterações climáticas, sobre estas matérias, disse há dias numa entrevista que “se esta seca fosse na idade Média, o País atravessava um período de fome generalizada.”
Diz um provérbio popular, de antiguidade óbvia mas não provável, que
“a chuva falta nos meses mas nunca falta no ano.” Assim fosse.
Pensemos.
Alexandre Honrado
Historiador